A varíola é uma das doenças mais mortais que o homem já enfrentou. Disputa com a peste bubônica o primeiro lugar na lista das epidemias que mais causaram mortes na história. Sim, ambas perdem para a gripe espanhola, mas além da letalidade, tanto a varíola quanto a peste bubônica mudaram o curso da humanidade impactando o mundo que conhecemos hoje.
A varíola, oriunda provavelmente da Índia, foi usada como arma biológica na conquista da América pelos espanhóis. Na guerra dos ingleses contra os franceses e indígenas na disputa do território que hoje é os Estados Unidos, soldados distribuiam cobertores contaminados com pústulas da doença, causando a morte dos inimigos. Em guerras na Europa, soldados jogavam corpos de vítimas em cidades sitiadas.
Na história da medicina, foi a varíola que deu origem ao conceito de vacina, ainda no século XI na China, com a escarificação de pessoas usando secreções oriundas de feridas de pacientes, mas era um procedimento que tinha alguma letalidade. Em 1796, quando ainda nem se sabia da existência de microrganismos e muito menos de vírus, Edward Jenner observou que as mulheres que ordenhavam vacas e que já tinham pego a forma animal da varíola e que era benigna, não contraiam a forma humana, muito mais grave.
Então, ele inoculou a secreção das feridas da mão de uma ordenhadeira chamada Sarah Nelmes, que tinha a doença (cowpox), em um menino saudável de 8 anos, James Phipps. O garoto teve uma forma branda de varíola e se curou. Seis semanas depois, Jenner inoculou o menino com secreção de varíola humana e o menino não desenvolveu a doença. Daí a origem em latim da palavra, vaccinus, de vacca (vaca).
A varíola era conhecida e temida como a doença da bexiga. Começava como uma gripe, evoluia com febre, dores, cansaço, sintomas respiratórios, enfartamento ganglionar (populares ínguas) e entre o sexto e o décimo dia, apareciam as lesões avermelhadas, que adquiriam a coloração amarela devido à presença de secreção purulenta.
As vesículas estouravam, formavam feridas e após alguns dias secavam. Todo o corpo era tomado pelas bexigas e se a pessoa escapava da morte (ela tinha alta letalidade, cerca de 30%), geralmente ficava com a pele marcada pelas cicatrizes. Essa era a história da varíola major, existia uma mais branda, a minor ou alastrim com letalidade inferior a 1%.
Começo com essa história para compreender o medo da reintrodução dessa doença nos dias de hoje. Foi o primeiro vírus que o homem conseguiu erradicar graças à vacina e ao fato de ser uma doença sem reservatórios animais – não era uma zoonose. Foi erradicada no fim dos anos 70. Hoje só existem vírus guardados em dois ou três laboratórios militares de segurança máxima. Por que guardar o vírus, e em laboratórios militares? Para se defender dos que poderiam transformá-lo em arma biológica! O homem é o bicho do homem.
A varíola dos macacos
E agora estamos vendo surgir, no meio/fim da pandemia da covid-19, casos de uma doença que a maioria das pessoas não conheciam – monkeypox – a varíola do macaco. Hoje está presente em 12 países, com cerca de 92 casos confirmados e 240 suspeitos. A humanidade volta a ter pesadelos apesar da letalidade ser bem menor que a da varíola humana – se situa em torno de 1% para a variante da Nigéria e de 10% para a variante do Congo. O fato preocupante é a transmissão homem-homem, que foi o que ocorreu nos casos que estão em investigação na África.
Essa varíola já era conhecida dos cientistas. Foi descrita em 1958 como uma zoonose presente em ratos e macacos, é frequente e endêmica na África ocidental (Nigéria e proximidades) e na África central (Congo e proximidades), provavelmente os ratos são o reservatório original. Devido aos hábitos alimentares dos habitantes locais que usam o macaco como alimento, a partir de 1970, foram descritos os primeiros casos de varíola dos macacos em humanos.
Passou-se a considerar a doença como uma endemia africana e foram noticiados casos de transmissão entre humanos. Ocorreram alguns episódios de exportação de animais contaminados que infectaram humanos no mundo. Mas a doença tem infectividade baixa e exige um contato mais prolongado para se disseminar e assim esses eventos não causaram muita surpresa.
Mas, de repente, tivemos um número muito grande de casos espalhados por 12 países, simultaneamente a algo que parece ser um momento mais favorável da pandemia da covid.
O vírus dos macacos é um vírus da mesma família do vírus humano. Um DNA vírus da família Orthopoxvirus. Um vírus grande e complexo, que tem poucas mutações. O período de incubação varia entre 5 e 10 dias, podendo chegar a 20 dias e a história é semelhante à da varíola humana, mas com uma capacidade de transmissão entre humanos mais baixa. Exige um contato mais prolongado e também pode ser disseminado por gotículas de água da respiração (não aerossóis).
Na Europa, uma fábrica dinamarquesa (Bavarian Nordic) desenvolveu há alguns anos uma vacina de vírus atenuado contra a varíola humana – Jynneos –, que deve ser aplicada em duas doses, com intervalo de 4 semanas, sua eficácia é de 85%. Esse desenvolvimento foi motivado pela necessidade de produzir uma defesa contra o uso em uma guerra em que o vírus da varíola fosse usado como arma. E também devido ao fato de que a vacina anterior, que foi usada para erradicar a doença, era uma vacina com muitos eventos colaterais. Essa vacina nova também protege contra a varíola dos macacos. Talvez pessoas vacinadas até o fim dos anos 70 possam estar protegidas contra a atual doença.
Quando se contrai a doença, a vacina pode ser usada terapeuticamente, além de alguns antivirais (cidofovir, brincidofovir e tecovirimat).
Uma questão a mais a ser considerada é que os casos em investigação no mundo são de homens envolvidos com sexo entre homens. Aqui é importante realçar que não se trata de uma doença sexualmente transmissível e sim de uma enfermidade que se dissemina pelo contato. Não pelo ato sexual.
Em resumo, é uma doença conhecida, com vacina (ainda que com baixa produção, mas eficaz), que é tratável com medicamentos específicos e que tem baixa capacidade de infectividade. A proteção se dá com medidas como o uso de máscaras, o isolamento do paciente e a vacinação dos profissionais de saúde envolvidos no cuidado. Por ser um vírus grande, será mais difícil sofrer mutações, embora possam ocorrer, mas não será como um Sars-CoV-2. Assim temos uma situação que deve preocupar o mundo, mas dificilmente vai se transformar em um problema como a atual pandemia.
Com certeza, ela não será um problema mundial se o mundo resolver ajudar a África a conter a endemia, oferecendo vacinas às pessoas que moram nas áreas endêmicas. Não é um problema africano, é um problema do mundo e é dessa maneira que temos que ver as próximas ameaças microbiológicas. Todos somos responsáveis.