Com o fácil acesso à internet e à grande gama de informações (verdadeiras ou não) sobre o universo da medicina, é muito comum encontrar pacientes que, antes mesmo de procurar um especialista, se autodiagnosticam e automedicam sem saber bem se possuem realmente aquela patologia e se o tratamento que iniciaram realmente é efetivo – ou apenas trará mais problemas. Ainda assim, não é difícil se deparar com colegas médicos que muitas vezes, por não conhecerem totalmente o quadro clínico e o histórico do paciente, acabam receitando remédios de maneira exacerbada. Apesar de parecerem ser de simples resolução, esses dois exemplos mostram que é preciso prestar maior atenção durante o processo de diagnóstico e cuidado.
Pensando em como melhorar a assistência médica, o belga Marc Jamoulle propôs, em 1999, o conceito de Prevenção Quaternária (P4), o qual consiste basicamente em prevenir a medicalização exagerada, sobretudo em casos de estado de pré-doença ou indicadores de risco, e evitar intervenções desnecessárias, buscando reduzir danos à saúde do paciente por meio de práticas qualificadas, personalizadas e humanizadas de cuidado.
Esse tipo de prevenção é, segundo a teoria de Jamoulle, o último nível nessa linhagem assistencial, e vai além da conscientização e imunização, que são praticados na atenção primária; das ações para a detecção precoce de problemas de saúde em estágio inicial a fim de facilitar a cura, que define a secundária; e de um efetivo tratamento e/ou reabilitação de um paciente com um problema de saúde já instalado e diagnosticado, que caracteriza a terciária. A P4 enfatiza o perigo do adoecimento iatrogênico (conceito que se refere a um estado de adoecimento, efeitos adversos ou complicações causadas por ou resultantes de uma intervenção médica), o excesso de intervenções e a medicalização desnecessária.
Sobre dificuldades e excessos
Segundo Charles Dalcanale Tesser, doutor em Saúde Coletiva e professor adjunto do Departamento de Saúde Pública do Centro de Ciências da Saúde da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), “a prática da P4, ainda não é tão difundida no Brasil por conta do alinhamento de diversos aspectos em relação à comunicação com os pacientes e ao uso do conhecimento especializado e técnico por parte dos médicos”. Porém, esse nível de prevenção se faz muito necessário e efetivo quando se pensa nos excessos – de rastreamento, de exames e de medicamentos – praticados nos cuidados. É importante avaliar todos os riscos e benefícios de determinada intervenção médica.
O rastreamento, por exemplo, serve para identificar patologias em estágio precoce e controlar riscos, mas também pode detectar pequenas alterações ou mesmo doenças que provavelmente não causariam problemas no futuro – e que podem levar à realização de procedimentos desnecessários, como biópsias, tratamentos medicamentosos e até mesmo cirurgias. Já em relação aos exames, por pressão aplicada muitas vezes pelos próprios pacientes, médicos solicitam mais do que o necessário, algo que também pode trazer danos à saúde, vide o caso da radiação em exames de raio-X. A medicalização, por sua vez, historicamente passou a ser empregada para fatores de risco, como hipertensão arterial ou colesterol alto, que agora são tratados como e entendidos pelos pacientes enquanto “doenças”.
Para mudar esse cenário, é preciso realizar alterações no dia a dia da prática assistencial, buscando evidências isentas, resistindo aos pedidos dos pacientes e abusos comumente praticados por colegas, buscando outros recursos e utilizando a P4 para munir as pessoas de informações confiáveis.
Como a P4 pode ser aplicada na prática médica
De acordo com Tesser, o atendimento clínico é dividido em duas partes – a primeira consiste em coleta de dados e investigação clínica, e a segunda em diagnóstico e negociação do plano terapêutico – e a P4 pode ser aplicada nos dois últimos momentos. Nesses, a principal via de manifestação desse tipo de prevenção se dá na dimensão dos atos cognitivos dos profissionais (que produzem uma elaboração interpretativa, comumente chamada de diagnóstico) e na dimensão comunicativa.
Na primeira dimensão, segundo o estudo Prevenção quaternária: as bases para sua operacionalização na relação médico-paciente, publicado por Tesser e Armando Norman, da Universidade de Durham, na Revista Brasileira de Medicina de Família e Comunidade, a prática da P4 deve ser realizada por meio da preferência por uma concepção dinâmica dos adoecimentos que é ponderada caso a caso, associada a um equilíbrio cuidadoso no uso dos quatro eixos constitutivos das doenças na biomedicina (anatomopatológico, fisiopatológico, semiológico e epidemiológico), ambos associados com uma distinção importante entre o adoecimento presente que pressiona por cuidado imediato e a preocupação com o adoecimento futuro.
A concepção dinâmica dos adoecimentos, ainda de acordo com o estudo, se constitui como um instrumento de operacionalização da prevenção quaternária por meio do uso cuidadoso da linguagem – na segunda dimensão, a comunicativa. Dessa forma, as palavras são a maior ferramenta da P4. “As palavras escolhidas pelos médicos deveriam pertencer ao universo cultural das pessoas (ou pacientes) e precisam ser cuidadosamente utilizadas para que suas crenças, ansiedades e medos sejam acolhidos e processados conjuntamente, de modo a tematizar de forma tranquila as complexidades e incertezas inerentes ao processo do cuidado”, afirmam os pesquisadores. Um exemplo disso é a troca constante de termos usuais por técnicos, como transformar “dor de cabeça” em “cefaleia” ou “dor nas costas” em “lombalgia”, o que pode potencializar a estigmatização e medicalização.

“Alguns termos técnicos que vão se disseminando na sociedade carecem de explicações adicionais, devendo-se, portanto, alertar aos pacientes que fatores de risco como colesterol elevado, hipertensão, obesidade e outras condições não se constituem como doenças. Assim, pensar e falar processualmente são um auxílio na comunicação e na prevenção quaternária: comunicar que a pressão está um pouco alta e merece atenção é preferível e diferente de usar a palavra ‘hipertensão’ ou ‘hipertenso’, que implica em um diagnóstico de ‘doença’ crônica, incurável, associada a uso de medicação, restrições dietéticas e controles laboratoriais vitalícios”, continuam Tesser e Norman.
A P4 se baseia na relação entre médicos e pacientes e, com isso, é importante o diálogo. Serem conhecidos histórico de saúde e todos os sintomas, riscos dos tratamentos e impactos dos exames solicitados, são pontos cruciais a serem levados em consideração. Além disso, para evitar os excessos e aplicar efetivamente a P4, segundo sugerem os pesquisadores no estudo Prevenção quaternária na atenção primária à saúde: uma necessidade do Sistema Único de Saúde, é preciso desenvolver a prática por dentro da atividade clínica e aliar uma abordagem centrada no paciente, com a medicina baseada em evidências e o cuidado focado na atenção primária à saúde – com longitudinalidade (mesma equipe de profissionais cuidado dos mesmos usuários ao longo de grande tempo).