A Lei Geral de Proteção de Dados, que foi aprovada em agosto de 2018 e entrará em vigor em agosto de 2020, é um avanço para a garantia da privacidade, um valor que tem sido colocado à prova com o advento das redes sociais. É importante, porém, levar em consideração que em saúde os dados de toda a população são fundamentais para “calibrar os exames”.
Um dos maiores estatísticos de todos os tempos foi Thomas Bayes, que, além de matemático, era também pastor e viveu na primeira metade do século XVIII. Não é muito fácil compreender as ideias de Bayes, embora ele tenha desenvolvido seu teorema a partir da observação de elementos naturais, tais como o sol se pôr. Segundo o seu amigo, Richard Price, que deu publicidade ao trabalho de Bayes, se uma pessoa que não fosse deste mundo visse o sol se pôr e, depois, nascer, uma, duas, três vezes, após algumas noites, teria certeza que isso voltaria a acontecer.
Na saúde, o Teorema de Bayes ajudou na compreensão de que a interpretação dos resultados dos exames depende da quantidade de pessoas que tem a doença testada. Isso parece incrível ainda hoje, por isso, Bayes foi tão importante quanto pioneiro. Ou seja, se eu faço um hemograma, mas poucas pessoas semelhantes a mim têm anemia, há mais chance de um eventual resultado de anemia ser um falso-positivo, ou seja, ter sido um erro. Sempre acontecem falsos-positivos, pois nenhum aparelho acerta 100%, mas quando há menos gente com o problema testado, acontecem mais falsos-positivos.
Outro exemplo é a mamografia. Quando se faz mamografia com pessoas de mais de 50 anos, há menos chance de falso-positivo. Já com mulheres entre 40 e 50 anos, como tem menor incidência de câncer de mama nesta faixa etária, a chance de falso-positivo aumenta. Por isso, o trabalho de Bayes permitiu interpretar melhor os exames a partir do conhecimento de toda a população. Ou seja, os dados passados das pessoas semelhantes e que vivem na mesma comunidade são importantes para o cuidado de um indivíduo. Isso nos leva a pensar que a “doação” dos dados, mesmo que anonimizados, vai ser cada vez mais um valor para a sociedade. É fundamental que a sociedade se envolva nesse debate, tanto da privacidade quanto da importância do dado ser usado em benefício de outras pessoas.
Bayes, também, ajuda na compreensão de que os valores de referência não precisam sempre ser fixos. Muitas vezes, os resultados de exames vêm com valores de referência ao lado. Como o nome diz, são valores de “referência”, portanto, também, precisam de interpretação. Por exemplo, o LDL, que é o colesterol ruim, segundo os protocolos mais atuais, pode ser considerado aceitável de 70 a 190mg/dL. Isso porque a quantidade (ou prevalência) de problemas decorrentes do colesterol varia de acordo com outros fatores, tais como existência de infarto prévio ou diabetes. Quando há mais fatores de risco, há maior chance de o colesterol prejudicar e, por isso, espera-se um colesterol mais baixo. Já quando a pessoa tem menos fatores de risco, há menos chance de o colesterol prejudicar e, por isso, permite-se um colesterol mais alto. Por conseguinte, é necessário personalizar os valores de referência para alguns exames, tal como do colesterol.
Por fim, o Teorema de Bayes pode ser usado, ainda, para demonstrar a importância do profissional generalista para o sistema de saúde. Um especialista tem um conjunto de conhecimentos direcionado para uma área específica. Caso muitos pacientes que não têm um problema desta área específica do conhecimento procurem o especialista, há mais chance de produzir falsos-positivos, ou seja, diagnósticos que não existem de fato. Quando um generalista encaminha apenas um grupo de pessoas ao especialista, assim, fazendo um filtro, aumenta a chance de algumas dessas pessoas terem o problema a ser testado pelo especialista, logo, diminui a quantidade de falso-positivo.
O grande volume de dados e o avanço da estatística, por um lado, trouxeram grande benefício para o cuidado em saúde, sendo que a estatística passou a fazer parte do grupo de conhecimentos essenciais para se praticar boa medicina. Por outro lado, trouxeram uma complexidade que poucas pessoas, ou mesmo médicos, conseguem alcançar. Se isso é verdade, também, é cada vez mais correto afirmar que nenhuma medicação ou intervenção substitui hábitos saudáveis como alimentação e atividade física regular. A estatística tem esta vantagem: a de demonstrar de forma cabal o que já sabíamos de forma mais intuitiva. Quem sabe toda esta complexidade que resulta em conclusões muitas vezes óbvias não seja um estímulo para perseguir, com mais dedicação, a mudança de hábitos?
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