Será que este é o momento de falar da próxima peste? A atual ainda tem muitas vidas para ceifar e o fará. Estamos, na maior parte do país, em um momento de estabilização e, em vários estados, com queda no número de casos, certo de que existe um estoque de vidas que ainda está isolado – parte são alunos que não retomaram suas atividades.
Estima-se que o país tem cerca de 60 milhões de pessoas nessa condição – alunos e trabalhadores da educação. E ainda temos os idosos e portadores de comorbidades, que resolveram se isolar. Estes serão o combustível da próxima onda. Também em grande medida serão os que procurarão os serviços de saúde para resolver seus problemas de saúde crônicos que foram postergados nos últimos meses devido ao medo de sair de casa.
Muitas emoções ainda viveremos. Acabou o normal.
Mas continuamos a criar muitos animais para consumo humano. Porcos, frangos, bois, entre outros. Recentemente tivemos dois episódios de surtos epidêmicos com o sugestivo nome de gripe suína e gripe aviária. Receberam esses nomes pois se formulou a hipótese de que foram vírus que saltaram desses animais para o homem. Da mesma família do coronavírus que nos inferniza a vida hoje, tivemos, em 2015, uma epidemia de MERS – Síndrome Respiratória do Oriente, na Coreia. Provavelmente oriunda de camelos, esse vírus tem circulado por aí desde que foi identificado. Existe ainda o SARS – Síndrome Respiratória Aguda Grave, também da mesma família, que frequentemente reaparece.
O Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente – PNUMA, em relatório publicado em 2016, alerta que uma nova doença infecciosa surge a cada quatro meses. E 75% delas são zoonoses – circulam entre os homens e os animais. Com a nossa capacidade de invadir o meio ambiente, de pressionar os biomas com a nossa presença destrutiva, como ocorre na Amazônia ou no Pantanal, pode-se supor que deste enfrentamento, da criação extensiva de gado nestas áreas invadidas, poderá emergir a próxima peste. Pressão sobre o ecossistema, pela destruição e pela presença de um estranho – o gado e a presença de uma rica biota desconhecida que se sente ameaçada em seu ambiente. Porque a COVID-19 saltou do morcego para o pangolim e para o homem?
Se o destino está escrito, o que o homem deve fazer para conseguir enfrentar essa próxima ameaça? Como se preparar para diminuir seu impacto na humanidade?
São perguntas complexas, com respostas incompletas e muito difíceis. Porém, deve-se buscar conhecer melhor esses pequenos inimigos, como eles agem e como se defender deles.
Os países centrais dispõem de estruturas especializadas em olhar continuamente para a natureza e perscrutar em busca de novas enfermidades. São grandes centros de pesquisa médica e epidemiológica – os Centros de Controle de Doenças – CDC, que buscam entender novas e velhas doenças, novos microrganismos, como enfrentá-los, como produzir novas drogas, novas vacinas. São estruturas com grande concentração de pesquisadores, equipamentos sofisticados, uma grande capacidade de usar os conhecimentos das ciências ômicas para decodificar e enfrentar estas novas ameaças.

Frequentemente, essas megaestruturas estão sob o guarda-chuva das forças armadas. Sim, aos militares interessa saber como estes seres podem ser usados pelo inimigo como arma de guerra. O CDC americano em Atlanta pertence à marinha americana.
Qual é a composição básica dessas megaestruturas? Pode-se resumir em algumas competências:
- Um órgão de inteligência eletrônica que, a partir da bioinformática, consegue decodificar genomas e entender quais mutações estão sendo processadas. Os vírus da família coronavírus têm cerca de 32 mil bases e são bastante suscetíveis a recombinações que ocorrem quando estão se multiplicando. Eles, que já estão tão próximos, devem ser objeto de constante vigilância. Essa área da ciência, munida de grande capacidade de processamento de dados, deve se dedicar a continuamente estudar novas formas de vida. A bioinformática também é utilizada para acompanhar um grande número de pessoas e de seus parâmetros. Buscar antecipar novas situações que podem estar apontando para novas e desconhecidas enfermidades. Perceber o padrão e os desvios de situações clínicas conhecidas em um grande número de pessoas é uma maneira inteligente de entender o comportamento de novas doenças.
- Paralelamente devem trabalhar os sequenciadores genéticos que descrevem a estrutura de novas formas de vida. Sejam vírus, bactérias multirresistentes, fungos, protozoários, enfim, algum componente do mundo microscópico que habita a terra conosco.
- No entanto, toda essa ciência exige a formação de mais profissionais com a capacidade de olhar para a natureza e identificar esses fenômenos. Temos que formar gente capacitada em epidemiologia e genômica. E que queiram trabalhar no campo – onde os fenômenos estão sendo desenvolvidos. É um novo tipo de profissional que já existe, mas que não estamos formando.
Para enfrentar a próxima peste no Brasil, falta uma forte base de bioinformática, de sequenciadores rápidos e bem operados, epidemiologistas com especialização em genômica. Esse movimento de criar capacidade pode ocorrer criando um CDC, o que é muito complexo e que exige uma capacidade de articulação que não creio existir no país hoje. Mas existem em instituições isoladas, como nas grandes universidades, na Fundação Oswaldo Cruz, no Instituto Butantã, uma plêiade de pesquisadores, docentes e até equipamentos, nos quais poderíamos investir e buscar criar uma rede articulada com essas capacidades. Parece difícil, mas redes cooperativas são formas inteligentes de criar movimentos que induzem ações necessárias para enfrentar situações complexas.
Não é fácil, mas exige uma visão clara do que se busca, meios para induzir a ação e disposição de participar por parte dos atores que compartilham desta visão proposta. Esse poderá ser um embrião multifacetado de um CDC brasileiro.