A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) emitiu um alerta, em dezembro de 2020, a respeito de um caso de Candida auris identificado no Brasil. Logo depois, infectologistas trataram de tranquilizar a população ao esclarecer que não tem potencial para gerar uma pandemia semelhante ao novo coranavírus.
No entanto, o multirresistente patógeno significa alto risco de morte no ambiente hospitalar. O Centro Americano de Controle e Prevenção de Doenças (CDC, na sigla em inglês) calcula que morrem entre 30% e 60% dos pacientes infectados, pois já estão debilitados quando são atingidos pelo fungo.
O primeiro paciente contagiado pelo Candida auris foi diagnosticado no Japão em 2009. Desde então, registraram-se casos em mais de 30 países, como Estados Unidos, Israel, França, Reino Unido, Espanha, Canadá, Índia, África do Sul, Venezuela e Colômbia. Apenas em solo norte-americano, o CDC estima que houve o registro de cerca de 600 casos.
Um dos estudiosos do tema é o médico Alessandro C. Pasqualotto, professor da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA) e consultor da Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI). Seu doutorado foi dedicado às pesquisas de fungos do gênero Candida. Veja a conversa do infectologista com o Conexão Unimed.
Conexão Seguros Unimed: Como hospitais devem fazer para evitar e controlar o Candida auris, que tem sido chamado de superfungo?
Alessandro Pasqualotto: À semelhança de outras espécies no gênero Candida, C. auris é transmitida por contato com superfícies contaminadas, objetos ou mesmo entre pessoas, primariamente no ambiente hospitalar. Neste sentido, é importante que hospitais que registrem casos positivos façam o devido reporte às agências reguladoras para que se faça o adequado controle epidemiológico. Assim como para outros microrganismos multirresistentes, como Clostridium difficile, a eliminação de C. auris do ambiente requer uso de desinfetantes em altas concentrações, conforme revisado recentemente pelo CDC de Atlanta.
Conexão: Como o Candida auris é identificado?
Pasqualotto: Embora a maioria dos pacientes expostos a C. auris desenvolva apenas colonização pelo fungo, C. auris pode causar uma diversidade de doenças, desde acometimento superficial (pele) até infecções invasivas (candidemia), o que se associa a elevada mortalidade. Do ponto de vista fenotípico, C. auris é muito semelhante a outras espécies no gênero Candida, especialmente Candida haemulonii.
Assim, somente com o emprego de modernas tecnologias como o Maldi-TOF ou sequenciamento genômico é que C. auris pode ser acuradamente identificada, o que significa dizer que a maioria dos laboratórios de microbiologia no Brasil não perceberá a presença de C. auris em amostras clínicas. Mais ainda, poucos são os centros no Brasil capacitados a realizar antifungigrama, de modo que o perfil de multirresistência da C. auris passará também despercebido para a maioria.
Conexão: Como ocorre a infecção pelo fungo?
Pasqualotto: C. auris é um fungo oportunista que mais comumente infecta pacientes invadidos e criticamente enfermos, em uso de antibióticos de amplo espectro, necessitando de cirurgias, corticosteroides e cateteres intravasculares. É mais um agente na lista de microrganismos multirresistentes que habitam o ambiente hospitalar, a exemplo de KPC, NDM, MRSA, VRE e Clostridium difficile.
Conexão: A Candida auris também pode surgir em locais como clínicas ou consultórios?
Pasqualotto: As infecções por C. auris são esperadas dentro do ambiente hospitalar. Porém, à semelhança do que já observamos com outros patógenos, a evolução da epidemia deve se caracterizar, ao longo do tempo, pela transferência dos casos para a comunidade.
Conexão: Quais os problemas que a infecção pelo fungo pode causar? Qual o risco de morte?
Pasqualotto: C. auris causa candidíase (ou candidose). Assim, pode causar desde infecções de pele até infecções graves na corrente sanguínea, sendo que as últimas podem atingir mortalidade superior a 50%.
Conexão: O senhor é coautor de um estudo, publicado em 2019, que já questionava a falta de capacidade de identificação do Candida auris no Brasil. Poderia nos explicar?
Pasqualotto: Avaliamos a capacidade de diagnóstico micológico na América Latina e observamos que menos de 20% dos laboratórios possuem acesso a Maldi-TOF e menor proporção tem capacidade de diagnosticar resistência em fungos. Estes dados são alarmantes. Percebe-se claramente que, a despeito de todo o avanço no conhecimento científico, as doenças fúngicas seguem sendo negligenciadas em nosso meio.
Os órgãos acreditadores precisam ter um olhar especial sobre estas situações: todo o hospital que atende pacientes imunossuprimidos ou realiza procedimentos invasivos deveria ser condicionado a identificar fungos em nível de espécie, bem como a realizar testes de sensibilidade para fungos. Se o hospital ou clínica não possui laboratório em condições para prestar este serviço, pois que comprem o serviço de apoiador; o que não é mais aceitável é termos amostras de sangue com identificações de leveduras como “Candida spp.”
Conexão: Pode haver mais de um caso no Brasil?
Pasqualotto: Este caso identificado na Bahia foi o primeiro a ser detectado no Brasil. No entanto, considerando que possuímos em nosso país uma baixa capacidade de diagnóstico. Isso provavelmente signifique subnotificação.
Embora exista um alerta mundial para a emergência de C. auris, uma espécie altamente resistente e transmissível de fungo, não há como compará-la à COVID-19, uma doença de transmissão respiratória que causou uma pandemia sem proporções. C. auris é agente oportunista de transmissão hospitalar; em síntese, é mais um microrganismo super-resistente criado por pressão seletiva do uso indiscriminado de antimicrobianos.
Mesmo que não seja o primeiro fungo resistente descrito, C. auris coloca os fungos lado a lado com as bactérias, como agentes de infecção por patógeno multirresistente no hospital. Uma realidade completamente diferente da Covid-19.