Para o final de ano, resolvi voltar a dois temas que me parecem extremamente importantes para orientar o futuro da humanidade e que nos impactaram profundamente: meio ambiente e liderança. O primeiro tema irei abordar citando um parágrafo do livro A Grande Gripe, de John M. Barry, escrito em 2004, e que relata com muitos fatos, quase como uma reportagem, como o mundo viveu a gripe espanhola.
“O homem pode ser definido com ‘moderno’ em grande parte, na medida em que tenta controlar a natureza em vez de se ajustar a ela. Nessa relação, a humanidade moderna geralmente tem sido a agressora e a mais ousada, alterando o fluxo dos rios, construindo falhas geológicas e, hoje, trabalhando na genética de espécies existentes. De modo geral, a natureza tem sido lânguida em sua resposta, embora seja contenciosa quando despertada e, ocasionalmente, demonstre talento para a violência.” (BARRY, 2014, p.182)
A frase revela de maneira elegante como o homem tem tratado o planeta. O vírus que surgiu em 1918 junto à movimentação de tropas nos EUA e que produziu mais mortes que a sangrenta 1ª Grande Guerra Mundial, chegou ao homem de maneira similar a que o coronavírus atual veio do morcego. A nossa forma de produzir alimentos em larga escala e de agredir o meio ambiente explicam as reações da natureza. Mas esse conhecimento não tem conseguido fazer com que a humanidade extraia ensinamentos para o futuro.
O conhecimento que foi construído a partir da decodificação do código genético, ao contrário, tem estimulado novas agressões. Como controlar a dengue, que é fruto da reurbanização do Aedes aegypti? Produzindo um mosquito geneticamente modificado que é estéril?
Os caminhos da ciência não podem ignorar que temos que corrigir nossos erros, e não produzir uma escalada de agressões à natureza.
No início da atual crise, em março de 2020, o historiador israelense Yuval Noah Harare, escreveu um interessante artigo na revista Times intitulado “In the battel against coronavirus, humanity lacks leadership” (traduzido em uma publicação da editora Companhia das Letras como: “Na batalha contra o coronavírus, faltam líderes à humanidade”) em que debate a necessidade que a humanidade tem de encontrar novos caminhos para enfrentar crises sanitárias.
Harare realça ainda a importância do papel dos líderes que agem por meio do exemplo e que informam com transparência o que está ocorrendo e como enfrentar adversidades, além da importância da ciência e de sua difusão para melhor enfrentar as crises e, em particular, reagir a um ambiente de muita desconfiança como o que estamos imersos hoje.
E mais: destaca que para enfrentar a situação atual não se pode partir da ideia de construir barreiras, de criar espaços de competição, e sim de construir redes colaborativas, de diminuir as desigualdades de forma a permitir que todos possam enfrentar a realidade que a todos afeta.
As mutações que ocorrem no vírus devem levar o homem a construir barreiras por meio da disseminação de serviços de saúde de acesso universal que permitam que todos possam ser atendidos em suas necessidades. As mutações são fruto da tentativa do vírus melhor enfrentar o meio ambiente, de se conformar no mundo e, às vezes, são fruto de transformações ao azar que, no entanto, podem produzir formas mais aperfeiçoadas de agressores. Se o homem não conseguir fazer com que todos se imunizem, o vírus continuará circulando e mutando, o que ocasionalmente poderá levar a uma cepa resistente à vacina em uso. Se não pela busca da igualdade, teremos que construir um outro modelo de busca da vida em sociedade que leve em conta a situação do enfrentamento da natureza.
Harare lembra o caso da varíola da qual somente nos livramos graças à vacinação de toda a população mundial. Assim, pensar em chegar primeiro e imaginar que os outros possam não ter acesso à vacina – pois eu já tive – será um grande erro. Se o vírus continuar circulando, certamente sofrerá mutações e poderá voltar mais agressivo e resistente à vacina em uso.
Conhecimento, cooperação, transparência e igualdade de acesso a serviços de saúde são os principais instrumentos que a humanidade tem para enfrentar crises sanitárias.


















