O setor de saúde enfrenta, há dois anos, a maior crise de nossa geração. Para ajudar a entender os reflexos disso na segurança do paciente e outros aspectos da gestão da qualidade nas organizações, o Conexão conversou com o Dr. Fabio Leite Gastal, presidente da ONA (Organização Nacional de Acreditação), diretor acadêmico da Faculdade Unimed e superintendente de Novos Negócios na Seguros Unimed. Confira a entrevista na íntegra.
CONEXÃO: Após dois anos de pandemia, como o senhor percebe o papel da qualidade e da segurança dentro dos serviços de saúde?
Dr. Fabio Gastal: A pandemia, na verdade, mostrou claramente o quanto isso é importante para uma sociedade e, em particular, para os serviços de saúde. Vamos pegar a questão, por exemplo, da importância dos EPIs e da higiene de mãos. Sempre foi uma luta da acreditação e dentro das organizações para que fossem adotados esses cuidados e práticas. Agora, os bons hábitos – como, por exemplo, o uso do álcool nas mãos – se tornaram parte da cultura da sociedade, não mais da cultura só dos serviços de saúde.Talvez essa seja uma das poucas coisas positivas que essa tragédia nos trouxe.
C: O senhor considera que houve um aprendizado com relação aos pilares de qualidade e segurança dos pacientes quando falamos em equidade e eficiência?
FG: Um ponto relevante para mencionarmos aqui é o quanto o SUS sai fortalecido dessa pandemia. E não só a questão da saúde em si, mas o SUS enquanto projeto generoso, projeto social fruto da Constituinte de 1988 e da democracia brasileira. Se algo segurou as ondas de contágio nesse país foi a estrutura que, ao longo desses 30 anos, foi montada pelo SUS, que é um projeto de Estado, não é um projeto de governo.
Nesse contexto, a saúde privada respondeu à altura e mostrou também que era capaz de dar respostas, inclusive em situações muito peculiares. Ou seja, o setor de saúde como um todo se juntou e se reuniu para dar uma resposta adequada para a sociedade no momento em que realmente era fundamental.
E, com a vacinação, foi possível mostrar que a ciência resolve. Mesmo com todos os obstáculos que existiram, nós, de alguma maneira, conseguimos vacinar grande parte da população e podemos caminhar para o possível fim da pandemia.
C: Pensando em Gestão de Pessoas, a pandemia trouxe algumas questões relevantes de Saúde Ocupacional, com profissionais expostos a riscos, adoecendo com covid-19, com burnout. O que é que se leva disso para esse momento de fim de pandemia?
FG: Tem duas questões importantes para o pós-pandemia, e as organizações de saúde terão que enfrentar esse cenário.
A primeira está relacionada às sequelas da doença. Há os que apresentam sequelas menores, médias e maiores, ainda não bem compreendidas. Não sabemos a total extensão das cicatrizes físicas, neurológicas, sistêmicas e estruturais. Então, como é que nós vamos nos organizar para cuidar dessas pessoas? Precisamos estudar mais as características biológicas da doença.
A segunda questão é a psicoemocional. Toda situação de enorme estresse, como nós vivemos nesses últimos dois anos, tem sequelas, principalmente relacionados ao cortisol, sendo secretado em larga escala durante muito tempo, o que pode desencadear um estresse crônico. Provavelmente, muitas pessoas também vão ter quadros relacionados à depressão, à ansiedade, à síndrome de pânico, que não foram adquiridas pela covid-19 em si.
C: A pandemia trouxe uma exposição dos profissionais de saúde a um novo ambiente de trabalho e novas formas de aprender. O que fica disso tudo depois do momento de crise?
FG: Começamos a falar muito do ensino remoto e do acompanhamento híbrido de pacientes que não eram de risco. Isso nos fez entender como a educação baseada na web pode ser a resposta para algumas das dificuldades que passamos nesses anos de pandemia. A ONA (Organização Nacional da Acreditação) é pioneira em educação baseada na web, usando esse formato desde 2001.
Ainda não conseguimos medir o impacto dessa questão em relação à telessaúde. A telessaúde não é só a telemedicina, é também teleassistência, telerrelacionamento, e dá suporte à quantidade de demanda de atendimento, que só cresce. Ainda tem muitos capítulos pela frente, que não dá para definir, mas eu acho que, felizmente, a última barreira caiu, que era essa barreira do hábito, da cultura, do preconceito.
C: Como o senhor mesmo citou, durante a pandemia, vimos surgir a assistência remota e híbrida, ainda que com uma legislação provisória. Como o senhor avalia esses serviços?
FG: Os profissionais, enfermeiros, médicos e hospitais têm capacidade de absorção, treinamento e conhecimento. O setor de saúde brasileiro é capaz de absorver e desenvolver soluções justamente para garantir melhores serviços para a população, e o Sistema Unimed vai estar nesse jogo, porque estamos nos preparando para jogar de maneira segura e centrada no paciente.
C: Com a pandemia foi obrigatório o desenvolvimento de temas relacionados à cultura de segurança. Mas sabemos que essa cultura é difícil de se consolidar. Como fortalecer a cultura de segurança não só entre os profissionais de saúde, mas para a população brasileira como um todo?
FG: Mudar o comportamento é algo muito complexo. Se lavar as mãos levou quase 200 anos para que o ser humano aprendesse, isso demonstra o quanto uma mudança de hábito e de cultura não é uma tarefa simples.
O que eu percebo é que, com essa situação da pandemia, nós temos algumas figuras sociais. Da mesma forma que o médico e enfermeiro de certa forma são a persona do setor de saúde e que de alguma maneira, simbolizam essa figura humana que está relacionada com o cuidado, você também tem a figura do jornalista na comunicação, uma pessoa que é como um radar.
A pandemia sensibilizou a categoria profissional dos jornalistas de uma forma mais séria com relação à questão da saúde. Os jornalistas começaram a entender melhor sobre o setor de saúde, sobre o SUS. O universo da comunicação e da saúde ficaram mais próximos. A boa mídia vai ser muito mais sensível à saúde, à ciência, que são temas complexos. O setor de saúde conseguiu demonstrar, por meio da comunicação, o seu papel na sociedade, um papel que muitas vezes era mal compreendido.