Com o avanço tecnológico da medicina, é natural que haja certo entusiasmo com o surgimento de novos testes diagnósticos e terapias inovadoras. Junta-se a este fator as consultas médicas cada vez mais curtas e temos um cenário onde o uso das novas tecnologias se coloca como uma espécie de alternativa à anamnese detalhada e atendimento humanizado. Esta combinação pode resultar na despersonalização do atendimento e no excesso de intervenções.
Aqui entra a prevenção quaternária. Essa discussão é relativamente recente: o termo foi cunhado pelo médico belga Marc Jamoulle em 1985 e se refere à “detecção de indivíduos em risco de tratamento excessivo para protegê-los de novas intervenções médicas inapropriadas e sugerir-lhes alternativas eticamente aceitáveis”.
“A finalidade do conceito é alertar para casos em que a indicação de exames complementares ou de procedimentos extrapola o que preveem as evidências científicas que embasam a boa prática profissional. O que se busca é equilibrar riscos e benefícios na execução deles”, explica Marlus Morais, médico gastroenterologista e docente da Faculdade Unimed nos cursos de pós-graduação em Auditoria em Saúde e Atenção Integral à Saúde.
Para maior entendimento, pense em procedimentos mais invasivos, como a endoscopia digestiva alta. Solicitá-la para qualquer caso de dor epigástrica pode submeter o paciente a um risco inerente à execução do exame – como aquele decorrente de sedação, relacionado ao estresse do procedimento ou até mesmo de uma intervenção durante o exame. “Nem sempre o pedido se justifica do ponto de vista do benefício diagnóstico que o exame pode trazer”, afirma.
Por que é preciso tomar cuidado ao solicitar exames em excesso?
“Qualquer teste diagnóstico envolve riscos”, diz André Deeke Sasse, oncologista, professor de pós-graduação na FCM-Unicamp, fundador do Grupo SOnHe – Sasse Oncologia e Hematologia e responsável pela coordenação médica e preceptoria dos residentes de Oncologia Clínica do Hospital PUC-Campinas.
Alguns exemplos são tomografias, radiografias e cintilografias, que usam radiação. Esta, por sua vez, quando incide sobre o paciente por diversas vezes, pode gerar alterações celulares com consequências nem sempre previsíveis ou desejadas – incluindo o aumento do risco de câncer no futuro. Para que se tenha ideia, de acordo com a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), no Brasil, se faz mais ressonâncias magnéticas e tomografias do que a comunidade europeia (levando em consideração a proporção das respectivas populações).
“Embora seja um exame de grande valia, a tomografia pode emitir radiação que equivale a cerca de 100 a 300 radiografias simultâneas. Quando bem indicada, ajudará a definir diagnóstico adequado e, consequentemente, seu tratamento. Porém, sendo desnecessária, poderá submeter o paciente ao risco acima mencionado”, adiciona Morais.
A ressonância magnética, apesar de não usar radiação, também traz seus efeitos.
“Ela pode causar alterações auditivas, além de ser um exame desagradável, especialmente para quem tem claustrofobia. Os contrastes utilizados nos exames também podem causar efeitos colaterais, alergia e até mesmo anafilaxia”, completa Sasse.
De acordo com os especialistas, até mesmo simples exames de sangue podem causar ansiedade desnecessária no paciente, especialmente quando trazem uma alteração pouco significativa – caso da alteração temporária de hormônio tireoidiano.
“Essa alteração não significa, necessariamente, que há uma doença instalada na tireóide, mas que, naquele momento, houve um desequilíbrio que pode ser naturalmente equilibrado pelo próprio organismo, sem necessidade de tratamento específico”, reitera Morais.
Como equilibrar a quantidade de exames solicitados com o bem-estar do paciente?
“Os procedimentos médicos e exames devem ser solicitados quando os benefícios superam os riscos, sempre. Ouvir as queixas, fazer um exame físico adequado, compreender os problemas e os valores individuais da pessoa faz parte de um bom atendimento médico”, resume Sasse.
O vínculo de longa duração com o paciente é fundamental para garantir a prevenção quaternária na prática. “Grande parte dos exames solicitados derivam da insegurança tanto do paciente em relação ao médico (que ele não conhece e talvez não confie) como do médico, que solicita os exames com pensamento clínico, mas com viés defensivo, procurando evitar a possibilidade de não ter descoberto uma doença que deveria diagnosticar”, comenta Morais.
Por isso, de acordo com Morais, quando há um vínculo estabelecido entre paciente e médico, menos exames são necessários – e os que são solicitados acabam sendo menos invasivos e/ou agressivos.
Caso você atenda em uma clínica ou consultório compartilhado, também é interessante manter as informações clínicas do paciente em um único repositório, de modo a facilitar que todos os profissionais envolvidos no atendimento tenham acesso aos laudos, sem a necessidade de repetir exames.
“Há iniciativas médicas de tendências que orientam os cuidados baseados nas melhores evidências. Como exemplo citamos o Choosing Wisely e o Epss, que são sistemas de informação que orientam médicos e pacientes quanto às melhores condutas para os casos”, conclui Morais.