D Pedro II era um defensor da ideia de proteger a propriedade intelectual de ideias e, portanto, de garantir durante um determinado período ao seu inventor, o monopólio de sua exploração. O Brasil sempre teve uma posição favorável a essa ideia, exceto em relação a medicamentos e durante a ditadura militar instaurada em 1964. Durante o período da ditadura as patentes de medicamentos foram suspensas, no Brasil. Foi criada a Ceme – Central de Medicamentos e foi gerada uma política explicita de produzir copias de medicamentos e de produção local de medicamentos e suas matérias primas. Esse foi o projeto em todas as áreas econômicas – era a política de substituição de importações, de geração de empregos locais e a garantia de alguma capacidade de exportação.
No início dos anos 90, Collor abriu a economia do Brasil e vimos o resultado dos 100% de matéria prima da indústria farmacêutica aqui produzidas, o Brasil passou em poucos meses a ser produtor de 5% e 10%! O resto era maquiagem. E naquela época o grosso da produção era na área da química e não da complexa biotecnologia que começava a caminhar.
De qualquer forma, o Brasil estava passando por um processo de transformação muito complexo – a nova Constituição Federal trouxe um novo arranjo político, a abertura econômica e logo a seguir o plano Real – um novo ambiente macroeconômico e a eleição de Fernando Henrique Cardoso, um sopro de modernidade. O Brasil resolveu entrar no novo mundo da globalização. E para entrar nesse mundo era necessário respeitar um conjunto novo de regras do comercio mundial. Uma delas era se tornar signatário do acordo TRIPS –Trade Related Intellectual Property Services. Somente signatários desse acordo podiam se filiar a Organização Mundial do Comercio – OMC e, portanto, se beneficiar dos mecanismos que facilitam os negócios entre países.
Viver ficou mais complexo, pois para viver tem que comerciar. Assinar o TRIPS exigia respeitar as patentes de medicamentos e o Brasil promulgou uma nova lei de patentes – 9279/96, que basicamente ordenou o que de alguma forma todos os países do mundo que fazem parte da OMC respeitam. Garantir patentes por 20 anos e um conjunto de regras de como tudo isso deve funcionar. Os países têm suas próprias regras, mas de uma forma ou de outra, todos chegam lá. Todos os países têm na própria lei de proteção de patentes uma forma de excepcionaliza-la, particularmente quando a segurança do país corre risco ou no caso de medicamentos e segurança sanitária. Nesses casos, pode-se promover a licença compulsória da patente – vulgarmente conhecido como quebra de patentes. Na lei brasileira é o disposto no artigo 71.
O Brasil fez muitas concessões à indústria farmacêutica em sua lei. Poderia demorar dez anos para entrar em vigor, mas aqui ela entrou em vigor de imediato, produtos que já estavam em comercialização poderiam não ter a proteção, mas aqui a maioria deles ganhou um status especial e teve concedida a patente por 20 anos e ainda se criou uma situação extraordinária que diz que se o Instituto Nacional de Propriedade Intelectual – INPI não funciona direito e demora para registrar uma patente, apesar de durante todo esse período ninguém poder produzir aquele produto, pois a lei garante a proteção desde a entrada do registro da patente, a empresa pode solicitar uma extensão por mais 10 anos da mesma. O que é uma jaboticaba da qual se vale hoje cerca de 78 produtos que não podem ter copias e significam um gasto de bilhões de reais a mais para garantir sua compra e entrega à população brasileira. Esta situação está em discussão em um projeto de lei no Congresso e em uma Ação Direta de Inconstitucionalidade no STF. Trata-se do parágrafo único do artigo 40 da lei de patentes.
Então existe um acordo mundial para respeitar a propriedade intelectual de ideias. E o mote é que esse arranjo estimula os inventores a criar sem investir em inovação, pois não seriam remunerados para isso. Assim estão as coisas, gostemos ou não. E a partir disso, deriva o direito ao monopólio da exploração da patente por 20 anos. Tendo a possibilidade de decretar a quebra da patente por emergência sanitária.
Neste momento de escassez de vacinas, existe uma discussão mundial sobre a quebra de patentes para que mais produtores possam tentar suprir a demanda por mais vacina. Tem também uma grande discussão ideológica sobre a questão do comércio e do acesso a medicamentos e às questões do lucro com a saúde. Tudo faz parte, mas vamos nos concentrar na questão mais urgente – vacinas hoje.
Durante os 30 anos em que o Brasil não respeitou a propriedade intelectual de ideias, o que conseguimos? Quase nada. Quando abrimos o mercado importávamos de tudo. Melhorou um pouco quando a Anvisa foi estruturada, ajustou o mercado e estipulou regras a serem seguidas para realizar cópias – a política de genéricos e mais tarde, em 2008, se estabeleceu com o ministro Temporão a política de PDPs – Parcerias de Desenvolvimento Produtivo. Nestas parcerias, o governo garantia que o gasto para fazer a engenharia reversa de um produto e chegar a uma copia adequada seria compensadora, pois o governo garantia a compra por cinco anos de toda a produção necessária para o país, desde que tenha um preço previamente acertado. O nome desse negocio ficou sendo uma encomenda tecnológica.
A questão que precisa ser entendida é que o que está depositado no INPI não permite criar uma cópia. Não está tudo lá. O jeito de produzir uma copia é fazer o que indianos e chineses fazem – reunir cientistas em um bom laboratório e fazem a engenharia reversa do produto, o que certamente demora um tempo e tem que ser submetido a estudos clínicos que não são os mesmos da droga original, mas podem ser bastante custosos e longos. E não é por exigências burocráticas e sim para garantir a segurança e eficácia do produto.
O outro jeito de copiar é fazendo um acordo com o detentor da patente que transfere a tecnologia e recebe o pagamento de royalties. É uma forma mais diplomática. É o que a Fiocruz e o Butantã fizeram com a Oxford/AstraZeneca e a Sinovac respectivamente.
O mundo está discutindo como garantir acesso a medicamento fundamentais para países muito pobres e boa parte das farmácias tem uma política voltada para essas economias. Os problemas são os países no meio do caminho – os BRICS em particular, os países de renda média.
Uma coisa é certa, para mudar isso temos que entender melhor o que significa comercio mundial, propriedade intelectual de ideias, politica industrial e de ciência e tecnologia, especialmente, na área farmacêutica. Tudo isso não é somente um jogo de mocinho e bandido, ou de capitalistas e socialistas. Não é a luta entre o bem e o mal. É mais complexa e se não a entendermos, não sairemos dessa arapuca. E é preciso achar alternativas de curto e de médio prazo para garantirmos o acesso a esses medicamentos tão necessários.
Quebrar patentes pode ser um caminho, mas somente será válido se produzir acesso aos medicamentos, além do discurso político.