Em setembro, a Folha de S.Paulo publicou um instigante texto assinado, entre outros, pelo economista Arminio Fraga, que nos últimos tempos tem se transformado em um defensor do SUS! Neste escrito, ele coloca algumas condições para que nosso sistema público de saúde melhore.
Basicamente, ele menciona de forma inédita que falta dinheiro no SUS. Refere comparações com outros países e conclui pela necessidade de mais recursos. Diz ainda da necessidade de ampliar a Atenção Primária à Saúde, construir algo que possa realmente ser chamado de regulação de acesso e que precisamos diminuir o impacto da judicialização da saúde por meio de uma reformulação do modelo de incorporação de tecnologia na saúde no Brasil.
E acho que este tema merece uma reflexão na linha que ele propõe. Ele indica que o caminho deve ser criar uma agência independente do tipo da inglesa. Sobre essa proposta é que vou escrever hoje.
A incorporação de tecnologia no país se realiza de forma distinta no SUS e na iniciativa privada.
Na iniciativa privada, a análise das tecnologias praticamente não sofria análise até os dias presentes. De dois em dois anos, a Agência Nacional de Saúde Suplementar – ANS promovia a incorporação automática no Rol de procedimentos de todas as tecnologias que fossem cadastradas na agência. Desde 2019 tem iniciado um processo de análise de tecnologias para decidir sobre sua incorporação e, portanto, oferta através dos planos de saúde.
No SUS, por meio do Comitê Nacional de Incorporação de Tecnologias – Conitec, são recebidas as demandas de incorporação, e o comitê ligado ao ministro da Saúde convoca especialistas, promove debates e audiências públicas para decidir sobre a incorporação ou não de uma determinada tecnologia. No entanto, a sua decisão é dependente da decisão da estrutura de poder do ministério e da questão orçamentária, embora o comitê não participe da negociação de preços e de outras condições para a incorporação da tecnologia.
De fato, o que ocorre na prática é que se tem um sistema de incorporação de tecnologia para pobres e outra para ricos. E no SUS as tecnologias por mais eficazes que sejam acabam não sendo incorporadas por decisões da estrutura de poder do ministério. Em grande medida, a decisão é resumida a ter ou não orçamento.
Apesar dessa constatação, existe um exemplo de incorporação de tecnologia no país que é um case de sucesso: aquela que ocorreu no caso do tratamento da Aids. A Aids incorporou todos os medicamentos que foram lançados desde que o programa foi instituído com muita celeridade e os desafios orçamentários foram enfrentados de maneira bastante criativa – produção local, licenciamento compulsório de patentes, agressivas negociações de preços, etc.
Somente para comprovar este sucesso, vale mencionar que no mesmo período em que o Brasil resolveu dar essa direção ao seu Programa Nacional da Aids, a África do Sul resolveu não tratar seus pacientes, e hoje estima-se que 15% da população desse país convive com o vírus. No Brasil temos cerca de 800 mil portadores do vírus hoje. Se reproduzíssemos o indicador da África do Sul, teríamos cerca de 31 milhões de portadores!
Na verdade, esse sucesso foi fruto de dois importantes vetores que se conjugaram ao longo do tempo. O primeiro vetor foi representado pela presença da sociedade civil estruturada em ONGs que sempre se fizeram representar e ouvir. Representavam os pacientes, seus parentes e outros ativistas dentro da sociedade, que lutavam por uma melhor ação do Estado. O outro vetor foi a estrutura representada pelos médicos, que tratavam os pacientes e que o ministério soube estruturar em uma comissão para analisar e decidir sobre a incorporação de tecnologias para o tratamento dos pacientes. Essa estrutura conseguiu a façanha de ser suficientemente representativa para construir sólidos consensos sobre os melhores tratamentos e, a partir desses consensos, ajudar os decisores a realizar as negociações de incorporação. Na Aids praticamente não se tem judicialização.
É necessário rever o processo de incorporação de tecnologia no país e, nesse sentido, cabe voltar ao Sistema de Saúde Inglês no qual o SUS se baseou.
Na Inglaterra foi criada uma agência independente, com corpo de gestores estáveis que é responsável pelo recebimento das solicitações de incorporação de tecnologia, analisá-las e, ao decidir sobre sua incorporação, participar decisivamente da definição de preços e condições de incorporação dos produtos. Ela se chama National Institute for Health and Clinical Excellence – NICE.

O NICE atua com base em um rígido conjunto de princípios que são os responsáveis pelo seu sucesso e sempre ser citado como um exemplo em todo o mundo. São seis princípios:
1 – Decisão baseada em evidências, que devem ser fortes e já registradas na literatura disponível;
2 – Especialistas independentes. São pareceristas, que opinam livres de conflitos de interesses sobre a tecnologias que são convidados a analisar;
3 – Envolvimento da sociedade – em seus comitês decisórios é obrigatória a participação de pelo menos dois representantes dos cidadãos;
4 – Independência e transparência em suas decisões, que podem sempre ser auditadas e verificadas;
5 – Revisão – periodicamente suas decisões podem ser revisadas. Se muda o conhecimento, deve mudar a decisão; e
6 – Desenvolvimento metodológico contínuo – buscar incorporar novas formas de analisar o processo de incorporação de tecnologia em saúde.
O NICE é um excelente modelo que deveria ser copiado. Com certeza existe, além do organismo, uma estrutura jurídica que permite que o Judiciário acompanhe as decisões dele emanadas e que a sociedade se sinta atendida em suas demandas de forma que o Judiciário somente será demandado em condições excepcionais.
Neste momento, no Brasil, enquanto não se tem uma estrutura melhor para decidir sobre a incorporação de tecnologias, procura-se montar estruturas de apoio ao processo decisório da justiça através da constituição de núcleos de análise e suporte a decisão de incorporar ou não uma tecnologia. Essa estrutura atual proposta pelo Conselho Nacional de Justiça não é suficiente para criar um modelo adequado de incorporação de tecnologia, apesar de mitigar seus efeitos.
Precisamos, atendendo às propostas que estão aflorando na sociedade, dar uma resposta definitiva para esse complexo e tão contemporâneo problema da incorporação de tecnologia na saúde.
Vamos propor e criar nossa agência única de incorporação de tecnologia em uma ampla negociação, envolvendo todos os atores do setor saúde em nosso país!