O Congresso recentemente propôs um projeto de lei que tornava automática a incorporação de medicamentos orais para tratamento de câncer que recebessem registro na Anvisa. O projeto aprovado pelo plenário, e vetado pelo presidente do Brasil, tornava desnecessária a avaliação tecnológica pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) e, portanto, a decisão sobre sua incorporação.
Na mesma linha, existe outro projeto de lei em tramitação que prevê tornar obrigatória a entrega de medicamentos aprovados pela Anvisa e indicados para o tratamento de atrofia muscular espinhal (AME). Essa é uma doença rara que tem dois produtos para seu tratamento. O primeiro chama-se Spinrasa, aprovado em 2016 e com custo estimado em US$750 mil no primeiro ano. E não é um tratamento definitivo.
E está agora em processo de registro o Zolgensma, que oferece um tratamento definitivo para a mesma AME por US$2,1 milhões. O medicamento utiliza uma tecnologia de edição genética para corrigir um defeito congênito que leva à doença. Por meio do uso da técnica de edição genética chamada de CRISPER, ele corrige o defeito e cura a doença permitindo que a criança, que não passaria de dois anos de vida, possa ter uma existência, por hora, normal.
Estima-se que, apesar de ser uma enfermidade rara, os custos para o SUS poderão ser de cerca de R$5 bilhões por ano, somente com esse medicamento. A questão que está colocada é de quem pagará essa conta. Se for paciente do SUS ou de planos privados, essa criança deve receber o tratamento?
Nossa Constituição diz que a saúde é um direito dos cidadãos garantido pelo Estado, mediante políticas públicas. A Anvisa existe para permitir ou não a comercialização de produtos de interesse na atenção à saúde. A incorporação desse produto aprovado para atenção à saúde, como ocorre na maioria dos países (a exceção são os EUA), passa por mais uma análise que é a Avaliação da Tecnologia em Saúde – ATS. Somente depois dessa avaliação é que ele poderá ser incorporado aos tratamentos.
A ATS transformou-se em uma complexa especialidade médica voltada para tomar essas complexas decisões. A tentativa é buscar medir o impacto do tratamento em uma enfermidade e suas consequências no curso da doença e na qualidade de vida da pessoa tratada. É melhor do que as terapias em uso? O custo é menor? Aumenta a expectativa de vida? O tempo de vida ganho permite uma vida com mais qualidade?
Embora ainda imperfeitas, as metodologias de avaliação da relação do impacto na doença e na qualidade de vida do paciente estão ficando cada vez melhores e permitem tomar decisões cada vez mais apuradas. Uma hipótese que tem sido adotada é o compartilhamento de risco com o fabricante da solução terapêutica, em que ele passa a responder com parte do pagamento caso a solução não ocorra. Mas outra pergunta que sempre fica por último para ser respondida é sobre o valor da vida humana. Não tem preço, mas tem custo?
Naturalmente não existem respostas boas. Mas essas vidas precisam ser salvas e, se aqui estamos discutindo poucos casos a um custo alto, este não é o problema mais importante. A discussão sobre a incorporação de quimioterápicos é muito mais complexa, pois envolve um grande número de pacientes com custos não tão altos, mas significativos no conjunto.
É notável o atraso do SUS em incorporar tratamentos na área da oncologia quando comparado aos medicamentos utilizados na área privada. Na área da oncologia, o tratamento de câncer de mama está defasado há 20 anos no SUS em relação ao que se utiliza corretamente na área privada no Brasil. E esse não é um exemplo, é a regra. A cirurgia minimamente invasiva está longe de ser a adotada no SUS, apesar de ser menos lesiva e ter melhores resultados.
A ATS no SUS é realizada pela CONITEC, – Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologia – criada por lei, vinculada ao Ministério da Saúde e composta por um colegiado de 13 membros. Sua análise é muito dependente do ministro e está sempre contingenciada pela realidade orçamentária. Isso não é tão óbvio, pois quando se obedece a realidade orçamentária, o cidadão pode recorrer à justiça, em busca de que se restabeleça o direito à saúde via judicialização.
Juízes não costumam dar muita atenção à realidade orçamentária, embora ultimamente estejam até prestando alguma atenção a essa história da ATS. Como equacionar melhor essa questão tão delicada e complexa?
Não existe outra saída, senão ter um único órgão voltado para decidir incorporar tecnologia no país e que seja válido para quem compra plano de saúde ou é cliente do SUS – a saúde é um bem público e, portanto, o acesso à tecnologia deve ser único.
Quem não concordar pode sair do país e gastar seu dinheiro lá fora. Essa discussão ficou bem explícita no episódio da compra das vacinas. A fila é única e a chance de viver tem que ser igual para todos os brasileiros. Em uma sociedade civilizada, ter dinheiro não pode ser a diferença entre a vida e a morte.
Assim, ter uma agência independente que obedeça a um conjunto de regras aprovadas pelo legislativo e consensuadas pela sociedade deve ser o caminho para resolver esse conflito. E a realidade orçamentária? Tem que estar na previsão da lei. E o quanto custa uma vida? Também. Esse modelo é o adotado no Reino Unido por meio de um órgão chamado The National Institute for Health and Care Excellence – NICE.
Certamente, a criação de uma agência independente com essas obrigações não resolverá todos os problemas aqui expostos. Continuará dependente a questão do valor da vida e, para muitos, ela continuará a não ter preço.
Mas aí, a sociedade, as empresas e a cidadania terão que construir coletivamente um novo ordenamento que garanta regras de acesso que sejam aceitáveis.