Até o fim deste ano, a depressão será o maior motivo de afastamento do trabalho no mundo, de acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS). Ela e outros transtornos mentais são o terceiro maior motivo de distanciamento de profissionais das atividades laborais no Brasil. Só em 2017 foram 9 mil casos, estima o Observatório Digital de Saúde e Segurança do Trabalho. O problema atinge várias classes, incluindo a da medicina, em especial, no início da carreira. Diversos estudos têm sugerido que médicos residentes apresentam taxas mais altas de depressão do que o público geral.
O estudo Mental health problems among medical students in Brazil: a systematic review and meta-analysis, publicado no Brazilian Journal of Psychiatry, reuniu dados de 59 pesquisas e mostrou que a prevalência de transtornos mentais em estudantes de medicina foi de 31,5%, a de depressão foi de 30,6% e a de transtornos de ansiedade foi de 32,9%. O dado de prevalência de depressão no país chega a ser maior que o apresentado no estudo Prevalence of Depression, Depressive Symptoms, and Suicidal Ideation Among Medical Students: A Systematic Review and Meta-Analysis, que une dados de 43 países e mostra que a depressão prevalece em 27,2% nesses locais.
Por que isso ocorre?
Em parte, as estatísticas podem ser explicadas pelas condições de formação e exercício da profissão desses jovens. A residência é um período em que o médico já tem a responsabilidade dada pelo diploma e o registro no conselho e, ao mesmo tempo, precisa lidar com mudanças na vida pessoal e profissional. No estudo publicado no Brazilian Journal of Psychiatry, 49,9% dos residentes relataram estresse, 51,5% baixa qualidade do sono e 46,1% sonolência diurna excessiva.
“No Brasil, há uma questão da precocidade com que as pessoas encaram as profissões da saúde ou são introduzidas nelas. O atendimento não é questão de saúde e doença, tem todo um contexto social por trás. O jovem médico trabalha em situações nas quais pode não ter o apoio da equipe ideal, gerando sobrecarga. Também sofre com falta de supervisão apropriada, privação de sono, estudos longe da família”, elenca a professora da disciplina de Clínica Geral e Propedêutica do Departamento de Clínica Médica da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), Maria do Patrocínio Nunes.
Os motivos não se limitam a esses casos. A pesquisa Work-Family Conflict and the Sex Difference in Depression Among Training Physicians, publicada no JAMA Internal Medicine, evidenciou que os conflitos familiares podem indicar a maior incidência de depressão entre as médicas residentes em comparação com os residentes do sexo masculino. O resultado tomou como base um estudo de coorte prospectivo longitudinal realizado nos Estados Unidos.
A questão da vida social do estudante da residência precisa ser levada em consideração, segundo Maria. “É impressionante como a família é importante para o bem-estar do médico, de maneira geral – como uma separação conjugal dos pais, por exemplo, pode trazer repercussões no dia a dia. Não é verdade, como se pensava na minha época, que a vida pessoal não interfere na vida profissional”, diz.
O que fazer
A má condição de saúde mental do médico residente pode mexer na forma como ele enxerga as próprias aptidões, gerar desinteresse, levar ao esgotamento, entre outros sintomas. Isso pode resultar na precarização do serviço prestado por ele. Um artigo publicado na revista JAMA Network Open, em novembro de 2019, mostra que um médico com sintomas depressivos tem 95% mais chances de relatar ter cometido um erro médico que os outros colegas sem sintomas semelhantes. A pesquisa foi conduzida por investigadores da Universidade de Michigan e do Memorial Sloan Kettering Cancer Center, nos Estados Unidos, e da Universidade de São Paulo (USP), no Brasil.
Há formas de prevenir o impacto da rotina na saúde mental dos jovens residentes, mas, para isso, primeiro o próprio estudante médico precisa entender que existe uma rede de apoio e buscá-la sempre que possível. “Precisa haver uma compreensão e aceitação, sentar e conversar sobre o que está passando. Falar de cura, isso é uma verdade dita pelos psicólogos”, acrescenta. Outra forma de se cuidar é formar uma rede de apoio social e emocional, estender as relações de trabalho, encontrar com os colegas fora do espaço da residência. “Também recomendo que eles pratiquem atividades físicas”, lembra a professora.
Já as instituições de saúde e ensino podem fomentar redes de apoio, programas de mentoria, supervisionar os estágios. Dessa forma, é possível identificar precocemente qualquer mudança de comportamento. Perguntar como o jovem médico se sente, para além da questão dos estágios, é uma porta de entrada para a conversa. Também é preciso que as instituições estejam atentas ao assédio moral, em todas as instâncias. “Ele não é feito só pelos médicos mais velhos, pode vir de outros residentes e até dos pacientes e acompanhantes. No fim, é preciso cuidar de quem cuida”, conclui a professora da USP.