Com certeza o leitor deste texto pode achar que eu estou exagerando na pergunta. Claro que sabemos para que serve uma pesquisa clínica. Mesmo em tempos tão difíceis e nos quais sempre tem alguém disposto a entregar uma cura milagrosa. O pior é que sempre nos encontramos buscando curas e o fato de serem milagrosas – ou seja, muito raras, – passa batido. Milagres são eventos raros: quando existem – e quase sempre – não são compreensíveis
É frequente ouvir, particularmente relativo a enfermidades autolimitadas, que tomar um certo remédio tem um efeito fantástico que leva à cura. É como dizer nessa mesma situação – levantar da cama todos os dias pela manhã cura essa doença. Não interessa o que você faça, as enfermidades autolimitadas tenderão à cura. No entanto, o tal remédio milagroso pode ter efeitos colaterais e, portanto, deve merecer um olhar crítico, melhor preparado, como, por exemplo, o padrão-ouro para tomar uma decisão sobre o uso de uma droga – o estudo randomizado e duplo-cego.
Tudo começa em um laboratório no qual cientistas testam in vitro drogas para saber se elas podem ter esta ou aquela atividade – antitumoral, antibiótica, antifúngica, antiviral! Em uma placa de petri cabe qualquer pergunta, e ela nos premiará com qualquer resposta, que deverá então ser reproduzível e, posteriormente, ser testada in vivo. Mas, primeiro em animais para verificar se o que ocorre in vitro se repete in vivo em um animal não humano. Se os resultados confirmarem o que ocorreu na placa de petri e forem reproduzíveis, essa descoberta deverá ser submetida a uma publicação, de preferência revisada previamente por pares. Assim caminha a ciência, reconfirmando todos seus passos.
Passou nos testes pré-clínicos. In vitro e em animais produziu efeito, foi revisada e publicada, de forma que os leitores puderam reproduzir o experimento se dele tiveram qualquer dúvida. Mas ainda tem que ser submetida a fisiologia humana que é diferente da dos ratos, dos coelhos e até dos adoráveis beagles!
Os estudos pré-clínicos estão bastante desenvolvidos em nosso país, e nossos centros de pesquisa têm razoável familiaridade com sua realização. A reprodutibilidade é garantida através da adoção do que é chamado de boas práticas de pesquisa, que nada mais é do que o pormenorizado registro de tudo que é realizado durante a pesquisa e que segue rigorosamente o que foi apresentado em um protocolo de pesquisa previamente aprovado por um comitê da organização especialmente composto para esse fim. Esse comitê analisa a proposta de pesquisa do ponto de vista metodológico e do ponto de vista ético – quanto ao uso de animais e humanos. No Brasil estes comitês fazem parte de um sistema vinculado ao Conselho Nacional de Ética em Pesquisa – CONEP, vinculado ao Conselho Nacional de Saúde. Em casos mais avançados, quando se está procurando desenvolver um medicamento com o objetivo de vir a comercializá-lo, também se terá que ter o aval da Anvisa para realizar a pesquisa.
As fases clínicas das pesquisas envolvem uma imensa parafernália de obrigações – termos de responsabilidades, seguros de vida, garantia de fornecimento do medicamento após a pesquisa terminar, registros de tudo que se realiza e poderão sofrer uma auditoria externa por parte de outros órgãos vinculados à própria pesquisa ou a órgãos tipo ANVISA e ou CONEP.
É bastante complexo e envolve muito dinheiro. Pensando nas vacinas, as para o COVID-19, foram testadas em múltiplos países em populações em torno de 40 mil pessoas. Esses testes duraram em torno de três a seis meses até atingir os primeiros resultados descritos nos respectivos protocolos de pesquisa. Não foi à toa que a alemã Biontech buscou a Pfizer para realizar seus estudos clínicos e a Oxford buscou a Astra/Zeneca. São muito caros esses estudos e são um investimento de risco, o produto pode ser reprovado.
Mas quem os realizam? Eles são realizados por organizações que atendem pacientes. Podem ser ate empresas especializadas que só fazem pesquisa clínica. No Brasil são poucas estas organizações, mas no caso da Janssen e da Pfizer elas contrataram uma empresa especializada na realização de estudos clínicos e cheia de certificações e validações. Já a Sinovac usou a estrutura própria do Butantã que tem uma rede de centros de pesquisa que já é utilizado para a sua vacina de dengue. E a AstraZeneca contratou a Unifesp para realizar seus estudos de fase 3 no Brasil.
Hoje a maioria das instituições de saúde descobriram que fazer pesquisa pode ser uma fonte de recursos adicionais. Grandes hospitais privados, além de universidades estão se envolvendo com pesquisa clínica. Surpreendente foi ver uma publicação paga na Folha de São Paulo anunciando uma ação conjunja do grupo Hap Vida com a Novartis. Obter receitas é uma das faces desta atividade, talvez a melhor face seja gerar valor para a instituição. Nada de outro mundo, mas se bem planejado pode se tornar rentável.
Mas, na minha opinião, que tive a oportunidade de participar da ativação de algumas experiências destas, o que é o resultado principal de se envolver com pesquisa clínica, é que essas instituições acabam contaminadas pelo ambiente de respeito ao conhecimento. E seus colaboradores sentem o impacto desse ambiente no seu dia a dia e na sua relação com os pacientes.
E aí, por mais que seja o nosso objetivo buscar uma cura para nossos pacientes, passamos a ter uma condição muito diferenciada para identificar milagres e diferencia-los de medicamentos seguros e eficazes.